Eutanásia, não por favor!


O médico deve acalmar os sofrimentos e as dores não apenas quando este alívio possa trazer cura, mas também quando pode servir para procurar uma morte doce e tranquila, Sir Francis Bacon
Não há volta a dar. Está na ordem do dia no nosso país. O direito à morte medicamente assistida, eutanásia. Não o suicídio assistido ( muito diferente ), com que muitos se confundem.  Isto tem sempre subjacente que a pessoa que o peça ou faça, o faz para o aliviar de um sofrimento atroz provocado por uma doença incurável, mesmo que não esteja em estado terminal ( outra confusão ). Este sofrimento pode ser o medo de perder qualidade de vida “ devido a condições físicas como a  paralisiaincontinênciafalta de ar, dificuldade em engolir, náuseas e vómitos… “.

Um assunto desta ordem, não pode ser debatido POR 230 pessoas, ás quais ninguém deu voto para serem juízes das nossas consciências. Pior, nenhum daqueles partidos que vão votar favoravelmente a Eutanásia, a teve nas suas propostas quando se candidataram para a AR.

E argumentos de que apenas se vai promover alterações ás leis penais, por forma a que alguém que queira morrer pelas mãos de outrem, permita que estas ultimas não sejam legalmente penalizadas, não pegam. Desculpas..... Quem a quer, a eutanásia, não é directo, arranja desculpas.
A eutanásia é um direito de escolha por quem já não pode ter o direito de viver uma vida onde o livre arbítrio permanece morto, Altskil
Nem sequer é um problema de consciência. Apenas um problema de facilitismo. Hoje a eutanásia, amanhã, como os holandeses querem, um comprimido para quem tem mais de 70 anos e assim prosseguindo, vamos aos velhos costumes dos romanos e espartanos: atirar para o fosso ou para a encosta, quem é deficiente, ou doente.

Lei III - O pai de imediato matará o filho monstruoso e contra a forma do gênero humano, que lhe tenha nascido recentemente ( lei das doze tábuas, ROMA )
Segundo Plutarco "o nascer, a criança espartana era inspecionada por membros do governo, que verificavam seu estado de saúde. Se fosse saudável, merecia os cuidados do Estado. Se fosse doente ou apresentasse alguma deficiência física ou mental, podia ser imediatamente morta". Falamos em Esparta, mas recentemente também em Atenas se descobriu um poço com mais de 200 esqueletos de crianças.

A depressão, medo de perder o controlo do corpo., a dignidade e independência , são factores psicológicos que condicionam e fazem as pessoas querer a morte, pedir a eutanásia ou quando legalmente não possível, o suicídio assistido.
É horrível assistir à agonia de uma esperança, Simone de Beauvoir
Na minha vida profissional, como administrador em Unidades de Saúde, muito poucas vezes me deparei com situações destas, confesso. De alguém pedir a morte. E graças às minhas equipas, logo o assunto morreu por ali. Infelizmente tanto em Portugal, como onde estou, já tive ocasiões em que colegas me pediram para estar presente no seu final da vida. È doloroso. È a amizade a falar. É preciso força e daí o cuidado e especial enfoque que dou ás minhas equipas de cuidados paliativos. Dentro da minha organização, são as que precisam de mais atenção e apoio, não só psicológico, porque a tarefa não é fácil. Prevenção de burn out é necessário e deve ser frequente. A equipa deve ser única, não rotativa e cada pessoa, médico, enfermeiro, assistente social, fisioterapeuta ( quando necessário ), ajudantes, psicólogos, psiquiatras, religiosos ... devem trabalhar de forma disciplinada e unida. Com um enfoque, no paciente e na família do paciente. Um trabalho que começa, desde logo, quando o utente chega à equipa, quer seja em internamento, consulta ou domicilio.

Ver gente a morrer, mais velhos ou sobretudo os mais novos ( porque sofremos pelo que não viveram ) é injusto e faz questionar para quem é religioso, se existe DEUS. Qualquer que seja o DEUS a que se ore. É necessária fé. Muita fé.  

Na morte. é necessária adequada preparação para lidar com aquelas pessoas que sofrem doenças incuráveis. E ás famílias. É necessário saber como dizer o que vai acontecer, como vai acontecer, o que esperar, como esperar e o que fazer até lá. Acima de tudo garantir que vai estar sempre alguém a acompanhar todas as fases daquele doente até ao fim e no fim.
A esperança, enganadora como é, serve contudo para nos levar ao fim da vida pelos caminhos mais agradáveis, François La Rochefoucault
Um dia, muitos anos atrás, em Encarnação, Mafra, administrava, era sócio, de uma empresa com sede na Madeira, que era a maior unidade de cuidados continuados do país. 233 camas, sendo que 20 eram de paliativos. Era um modelo, daí termos sido frequentemente falados na comunicação social, SIC, TVI, RTP e jornais diários. 

Tínhamos um utente o Sr. M. que estava só. Um dia, a equipa que o acompanhava disse-me que era da Madeira e perguntaram-me se não podia falar com ele, dado que eu estava/vivia na Madeira (hoje só tenho casa ). Só para ver se aligeirava o seu humor deprimido. Sim senhor, fí-lo. O Sr. M. tinha uma perna amputada e tinha os dedos do outro pé, com os primeiros sinais de necrose. Tinha diabetes tipo 2, segundo creio. O Sr. M. sabia que provavelmente ia acontecer à perna boa o que tinha acontecido à outra: dedos amputados, amputação a nível de joelho e por fim quase nas ancas. E o Sr. M. estava deprimido. Ao ponto de desejar a morte.
Onde vai a esperança quando nos deixa? Vai cavar a nossa sepultura, Sylvia Carmen
Falei com ele. Era de Sto António, tinha saído da Madeira quase 40 anos atrás, nunca mais tinha voltado. Fez vida perto de Lisboa. Nunca casou. Sempre trabalhou e com pouco mais de 60 anos  estava naquele estado. Mostrei-lhe e falei-lhe numa Madeira diferente daquela que ele conhecia e através do Google Maps !!!!, fui mostrando mais alguma coisa. Até, imaginem, a Igreja de Sto  António que reconheceu. Mostrou-me onde tinha nascido e vivido. Não muito longe. Reconheceu o largo o jardim e nem imaginava a existência da Via rápida.ou o novo aeroporto.
Não sou psicólogo, nem nada. Mas pedi na cozinha para lhe fazerem um milho frito e uma espetada. Perguntei à psicóloga que o acompanhava, ás assistentes sociais, animadoras, fisioterapeutas, psiquiatra e médico o que se podia fazer mais por ele.

Esperança, foi a resposta de todos. Tornar a cabeça sã. Fazê-lo ter outra atitude perante aqueles infortúnios da vida. Mostrar que ser diferente …não é problema. E que as dores, que tinha, deveriam e poderiam ser ultrapassadas. Com ajuda. E felizmente a minha excelente equipa ajudou a transformar o Sr. M. , a tal ponto, que passado 3\4\5 meses queria ir à Madeira.

E foi. Pagou as viagens, pediu alguém que o acompanhasse e foi. Infelizmente na Madeira, após contactarmos alguns lares, não tivemos a melhor resposta de apoio e foi para um hotel. Nem uma cama provisória aqueles Lares disseram que tinham. Pediam dinheiro, um deles quase 80€ de diária, comida e apoios não incluídos. Foi mais barato levar alguém de Lisboa. Que pagou.

Voltou outro homem e quando 2 anos mais tarde teve de amputar a outra perna, o Sr. M. pediu-me que o acompanhasse e quando acordou depois de ter saído da sala de operações, queria visitar mais mundo. E fê-lo.
A esperança é o único bem comum a todos os homens; aqueles que nada mais têm - ainda a possuem, Mileto de Tales
Até morrer, o Sr. M. de potencial suicida e/ou potencialmente desejando a eutanásia viveu sempre em crescendo. 3\4 anos mais tarde, telefonou-me do lar onde estava. Sabia que  ia morrer e pediu-me se seria possível estar com ele. Afinal éramos "madeirenses" , compadres.

Nessa altura estava longe, mas pedia a quem o acompanhava, para me ir relatando o que se passava, como estava . e falávamos. De onde estava e da Madeira. Da dele. E quando a hora estava a chegar, estava em Portugal e fui vê-lo. Falámos e morreu. A equipa que o acompanhou, de cuidados paliativos foi excelente. Não teve sofrimento. Foi-se desligando, sempre acompanhado. E morreu com a dignidade de um ser humano e com pena de não ter visitado mais. 

Para mim é difícil depois de ver, assistir este caso, que tenha de concordar com a eutanásia. Ou com aquilo que chamo de assassínio social. Porque, é na nossa mente e na equipa de profissionais que acompanha estas pessoas, que está a diferença entre querer-se a eutanásia, ou mantermos a nossa vida, por mais que ela custe, até ao final. Com dignidade, sem sofrimento. Acompanhados.

Tenho o privilégio de ter e ter tido excelentes equipas de cuidados paliativos a trabalhar comigo. São iguais ás outras, mas são diferentes. São especiais, têm que ser especiais. Porque para eles, o mais fácil não existe.
Se a vida não tem preço, nós comporta-mo-nos sempre como se alguma coisa ultrapassasse, em valor, a vida humana... Mas o quê? Antoine de Saint-Exupéry
Todo os animais, seres humanos incluídos, têm o instinto básico da auto-preservação, de viverem Só o perdem quando não têm ou deixam de ter confiança em si. Um elefante abandona a manada não para morrer, mas para a manada mais rapidamente seguir em frente. Uma pacaça velha, uma zebra ferida, abandonam o grupo, porque instintivamente sabem que o grupo fica mais forte sem eles e corre mais rápido. Mas quando a presa chega, eles defendem a sua vida. Por mais debilitados que estejam. 

É no doente e nos seus cuidadores, família que devemos actuar., ….. Existe sempre esforço humano e paliativo para levarmos a termo e com dignidade uma vida que nunca será inútil. Porque ninguém deseja morrer quando sente o seu sofrimento resolvido. Uma equipa de cuidados paliativos competente, de certeza que encontrará os meios para ajudar aquela pessoa e família, assim ultrapassando todas as fases da doença. Até ao fim e no fim.
Sossega, porque nada há que esperar,/ E por isso nada que desesperar também.. Álvaro de Campos
Um aniversário, uma data feliz, uma recordação feliz, ver uma fotografia, conhecer o membro mais novo da família, querer continuar a falar com os filhos, com a mulher….. fazem qualquer pessoa nunca desejar a morte. Têm um objectivo.

Desde que nascemos temos um objectivo. E quando estamos a morrer, outros objectivos teremos. Mas a morte antecipada….nunca é um deles. É apenas uma escapatória dada a ausência de objectivos, vontade, esperança e dignidade, tudo traduzido num sofrimento atroz, numa ausência de sentido para a vida. 

Fredy Mercury e a sua despedida. The Show must Go on:
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