O vírus do medo


O medo tolhe a mente e limita a capacidade de agir com racionalidade. Sabemos disso, mas normalmente aplicamos aos outros. E só quando nos acontece a nós, quando ele se aproxima do nosso mundo, é que nos conseguimos aperceber que o seu sabor e o seu cheiro são bem diferentes do que quando apenas falávamos dele.

A ameaça do coronavírus está a nos facilitar esse entendimento, ao mostrar o sabor e o cheiro do medo. E ele está bem patente nos meios de comunicação e nas redes sociais. Se antes, quando não nos sentíamos ameaçados com esta intensidade, já se notava demasiada má formação e pouca racionalidade nas redes sociais, não é dominados pelo medo que se notará o oposto. Muito pelo contrário. E por isso abundam os comentários que expõem a irracionalidade primária do medo e de algumas mentalidades. Sempre potenciada pelos títulos sensacionalistas e pelas notícias propositadamente redigidas para apavorar e dividir.

Apontar os vindos de fora, estrangeiros ou madeirenses que viajaram, como os culpados da chegada do vírus à Madeira é primário. É lógico que veio de fora. Não por uma qualquer culpa destas pessoas, mas por que o vírus teve origem lá fora. Por isso não podia vir de dentro. Na verdade, em todos os países afectados, com excepção da China, ele veio de fora.

Odiar a China ou os chineses é primário. Os vírus e as doenças que propagam não são desejados por ninguém, nem mesmo no país onde surgem. Poderia ter surgido em qualquer outra parte do mundo onde a pobreza mistura a falta de higiene com a proximidade de animais selvagens e domésticos para consumo humano. E o mundo é grande e a pobreza também.

Olhar os turistas com hostilidade é primário. A Madeira é um destino turístico, é natural que os encontremos e não são mais propensos a estarem infectados do que os madeirenses que viajaram, que têm familiares ou amigos que viajaram ou que simplesmente trabalhem no turismo ou convivam com quem trabalha. E a não ser que vivamos encarcerados, tal aplica-se a todos nós. Porque o vírus não escolhe nacionalidades, profissões ou estatutos sociais. Escolhe sistemas imunitários, ao que parece.
Ser agressivo ou ter atitudes que rocem a xenofobia é primário e particularmente grave. Porque o vírus vai amainar e a vida vai retomar a normalidade, assim como as actividades ligadas ao turismo. Que é a nossa galinha dos ovos de ouro. E uma galinha maltratada não só não põe ovos como espalha a palavra e relata a forma como foi tratada. Somos um povo que se orgulha de receber bem os forasteiros. E temos de o demonstrar em todas as circunstâncias, não apenas quando lucramos com isso ou para nos gabarmos de prémios e outros superlativos.

Querer fechar o aeroporto a sete chaves é primário. Porque somos uma ilha, sem ligações marítimas que não sejam de carga e porque existem madeirenses lá fora que precisam voltar. Quem vai de férias, em trabalho ou para estudar não leva todo o dinheiro do mundo nem é seguro que o tenha. Ser surpreendido por fronteiras encerradas, voos cancelados ou tarifas não reembolsáveis esgota recursos e pode  deixar muitos em situações delicadas. E a ajuda das embaixadas, consulados e demais autoridades não são garantidas ou podem não chegar a tempo de evitar sérias aflições. Não deveria ser preciso que nos aconteça a nós pessoalmente ou às nossas relações para percebermos que é preciso acautelar estas situações, antes de exigirmos que se feche a única porta de entrada na ilha. Porque quando o mundo enlouquece todos queremos estar em casa. É natural. Mesmo que para isso,  e bem, tenhamos de ficar em quarentena e assim evitar sermos foco de propagação do vírus, queremos voltar. E temos esse direito.

Bloquear o aeroporto para que não aterrem aviões é primário. Onde aterrarão os aeronaves que vêm buscar os cidadãos de nacionalidade estrangeira para os levar de volta para os seus países? Também eles têm o direito de poderem voltar a casa. Apontar comportamentos irresponsáveis de turistas é compreensível. Mas não se formos mais brandos com os nossos próprios comportamentos errados. As autoridades existem e funcionam em ambos os casos. Deixe-mo-las trabalharem.

Decretar quarentena obrigatória e isolamento social na tentativa de diminuir o número de pessoas infectadas, que entupiriam o nosso já frágil serviço público de saúde não é primário. É necessário. Mas permitir que 3000 trabalhadores da construção civil continuem a laborar, sem condições de segurança, num sector cujo funcionamento neste momento não é essencial, é mais do que primário . É desumano e discriminatório. E não se entende a conivência dos decisores. A não ser que a tão propalada preocupação com a vida e saúde da população seja apenas para enganar primários. O mesmo se pode dizer dos quadrantes que defendem com unhas e dentes a santidade e a importância da vida humana mas que ainda não ofereceram um cêntimo de ajuda para fazer face a esta situação de emergência. Ou ainda daqueles que beneficiam dos dinheiros públicos e que agora parecem não ter mãos que nos possam estender.

Fica a esperança, leve mas resiliente, de que esta experiência nos ensine a nos colocarmos no lugar do outro e a cultivarmos a empatia que deverá nascer ou reforçar-se com a  tomada de consciência de que somos, naquilo que verdadeiramente interessa, todos equivalentes.
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