Está expresso por todo o lado que o tribalismo
regressou em força. O livro importantíssimo de Mário Vargas Llosa, O Apelo da
Tribo, é uma denúncia certeira desta constatação. A esta reincidência da tribo
que Karl Popper chamou de «irracionalismo do ser humano primitivo que se aninha
no fundo mais secreto de todo os civilizados, os que nunca superamos completamente
a saudade daquele mundo tradicional, a tribo». Este irracionalismo tem-se
manifestado por todo o lado, não creio que seja só por causa do Coronavírus, porque
já podemos constatar muito tribalismo antes de se ouvir falar desta pandemia
que nos assola.
O contexto é este tempo que pela internet esbate a
distância e o perto, arrasta o bom e o mau de longe para a nossa beira. Daí os
impulsos de defesa se tornarem tão vivos para o mau de perto, mas também para o
mau remoto, que nos entra olhos dentro rápido e fanático, pronto para receber em
força o ódio e a vingança. Eis o fertilizante para o espírito da tribo por todo
o lado.
Assim, as ideias da tribo manifestam-se sob o jugo
terrível da negação da cultura, da democracia e da racionalidade. Não falta por
todo o lado os caudilhos a fazerem este trabalho manipulador das massas para
que comunguem destes ideais que alimentam os rebanhos acéfalos. Então a tribo
fecha-se cada vez mais sobre os seus filiados que odeiam o outro, o ser
diferente, a quem responsabilizam pelas desgraças que estão a surgir.
Estamos a criar um mundo sem perdão. Ou pior ainda,
os pecados dos antepassados recaem sobre as gerações seguintes. A tradição
cristã enfatizava a ideia de que existindo Deus, ele podia perdoar
infinitamente os pecados e reconciliar os povos entre si e as gerações umas com
as outras. A ideia da morte de Deus de Nietzsche insistiu na libertação e na autonomia
das pessoas, mas ao mesmo tempo gerou um enorme vazio quanto à necessidade da
reconciliação dos povos uns com os outros. Porém, os sentimentos de culpa,
pecado e vergonha continuam, mas sem uma entidade que os redima como fazia a
tradição cristã. Este vazio tem sido tremendamente trágico para a humanidade.
As acções humanas estão a ter consequências que
nunca ninguém tinha imaginado e não havendo redenção, a culpa, o pecado e a
vergonha estão por todo lado e passam de uns para os outros e de uma geração
para as seguintes (se não se lembram de nenhuma situação, pensem nos atentados
ecológicos de hoje, por exemplo). Não admira que vejamos filhos a pagarem caro
as asneiras dos pais, cidadãos deste lado do mundo pagarem o que fazem os
outros cidadãos do outro lado do mundo (as pandemias são ilustrativas desta
constatação) e que fatura reservarão os atentados ecológicos de hoje para
gerações vindouras…
O regresso da tribo é um recurso de «salvação» e quem
sabe uma forma de encontrar o vazio da redenção que a tradição cristã deixou de
fazer. As razões para este vazio não devem estar só e apenas na ideia do bode expiatória
da morte de Deus em Nietzsche que muitos recorrem, mas também em tantas outras,
que começam pelo encolher de ombros da Igreja Católica face aos ventos que
passam, o seu conservadorismo anacrónico, os escândalos sexuais e toda a
teimosia em manter-se séculos e séculos na redoma de uma tribo de privilegiados
indiferentes ao mundo e à vida concreta dos povos de cada tempo.
Enfim, certo é que há um mundo que precisa de
presença, de encontro e de coragem para retomar as referências essenciais da
reconciliação, para que a liberdade e a fraternidade sejam o chão seguro nos
caminhos da humanidade.
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