Calamidade democrática

Situações extremas exigem medidas extremas. Foi decretado “estado de emergência” pela primeira vez na história constitucional democrática portuguesa, a 18 de março de 2020, no momento em que os poderes da República entenderam que estávamos na iminência duma calamidade sanitária.


Já a Constituição de 1976 consagrou a possibilidade de se decretarem estados de excepção específicos. Mas, a Constituição da República Portuguesa vinca, no nº 1 do art. 19º, que os órgãos de soberania não podem suspender o exercício de direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de “estado de sítio” ou “estado de emergência”. É que a suspensão de direitos fundamentais, em conformidade com a Constituição, deve obedecer a um procedimento especialmente garantístico e não ficar nas mãos de um qualquer ato de governo.

A declaração do “estado de emergência” supõe uma situação de especial gravidade e, em casos extremos, procura preparar para uma situação que se prevê de elevadíssima dificuldade. Já a “situação de calamidade” deveria ser declarada para prevenir respostas extraordinárias para uma situação que já aconteceu e que se terá revelado muito pior que se esperava.

A Lei de Bases da Protecção Civil fixa que a declaração de “situação de calamidade” poderá estabelecer condicionamentos eventuais, entre outros, como limites à circulação ou permanência de pessoas. Fixa até uma obrigação de respeito e cumprimento pelas ordens legítimas das autoridades, incorrendo-se num crime de desobediência. No entanto, não se considera legítima uma ordem que restrinja os direitos, liberdades e garantias pessoais, apenas possíveis em “estado de sítio” ou “estado de emergência”, não abrangendo por isso a situação de calamidade.

Assim, é extremamente discutível a constitucionalidade de qualquer medida que imponha restrições à liberdade de circulação, bem como à liberdade pessoal constante do artº 27 da Constituição da República Portuguesa.

Então, o que dizer da Resolução nº 551/2020, publicada pelo JORAM, I, 143, de 30/7/2020, na qual o Governo Regional, invocando a “situação de calamidade”, «determina o uso obrigatório de máscara comunitária […] em espaços ou locais de acesso, permanência ou utilização pública e equiparados […]»?


A obrigação de uso de máscara como condição para circular na via pública restringe de forma inadmissível a liberdade de circulação.

Pode uma Resolução de um Governo Regional impor generalizadamente à população, limitações aos direitos, liberdades e garantias que a Constituição diz que apenas podem ser limitados no “estado de emergência” ou ”estado de sítio”?

A resposta é clara: é uma ordem ilegítima!

E ao contrário do que alguns poderão pensar, o que está em causa é a Democracia. Muito para além de uma medida de saúde pública, estamos em presença de actos de uma maioria política que se considera detentora de plenos poderes para tudo decidir, mesmo que à revelia da Constituição e da Lei. O que está em causa é a gramática da prepotência e do abuso de poder, a lógica do exceder das competências para decidir conforme as circunstâncias e as conveniências, sem olhar a meios.  Agora é a máscara, amanhã sabe-se lá o que será …
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