O Acontecimento “Covid-19”

O mundo de depois …

O Covid-19 surge como «um perigo gigantesco», gerador de uma convulsão global, que desencadeia o receio, o temor, o terror, gerando também alteração de comportamentos e de sentimentos.


Edgar Morin, em recente entrevista ao Le Monde, fala de uma “policrise” ou “megacrise”. Uma crise económica, que ameaça agravar-se em caos e escassez no nosso mundo. Uma crise política, que revela os erros de orientação estratégica na definição do modelo de desenvolvimento e das suas prioridades, que sacrificou a prevenção e a precaução do interesse público para satisfazer interesses privatísticos de lucratividade. Uma crise social, que agravou exponencialmente desigualdades sociais que já eram tão escandalosas nas sociedades. Uma crise civilizacional, que fez exteriorizar com maior evidência as insuficiências da solidariedade e que nos leva a questionar o nosso modo de vida coletivo e os seus padrões consumistas.

O “acontecimento Covid-19” envolveu-nos a todos, mesmo que nem todos tenhamos vivido o mesmo.

Para tanta gente o “acontecimento Covid-19” poderá não estar densificado pelo alarme da infeção individualmente contraída, nem necessariamente associado a relações de direta proximidade.

Para tanta gente o “acontecimento Covid-19” tornou-se dramático e traumático pelo que implicou nas alterações radicais das relações de trabalho, nalguns dos casos correspondendo à fulminante perda de todo o rendimento. Não eram pobres, eram trabalhadores com vínculos laborais precários. Tinham rendimentos, por vezes acima da média da restante população, mas ficaram sem nada na sequência do fenómeno Covid-19.

Outras pessoas terão experimentado com maior ou menor gravidade o problema de saúde. E sob muitas outras formas de manifestação, mais ou menos trágicas, o “acontecimento Covid-19” tornou-se muito próximo de cada um na dor, no sofrimento, na morte – muitas mortes, muito para além da sua geolocalização.
O “acontecimento Covid-19” atinge os indivíduos e, ao mesmo tempo que perturba a dimensão psicológica das pessoas, as suas condições ou meios de vida, desnorteia a estrutura das sociedades, evidenciando  tensões e perturbações não só nas «bolsas financeiras» e nos diagnósticos traumatizantes de uma «grande recessão económica», com paragens forçadas de atividade económica, com insolvências e falências, com desemprego, mas também no que se pode considerar «a bolsa da política», como por exemplo a generalizada pulverização das mediações de participação política e de construção democrática (na prática, pela via da desarticulação da iniciativa coletiva dos movimentos sociais, por via da limitação à atividade dos partidos políticos, por via dos condicionamentos à iniciativa de outras organizações sociais: movimentos e organizações ambientais, de defesa dos direitos humanos, do movimento sindical…). Somam-se ainda aos efeitos políticos, as práticas abusivas da governação quanto ao exercício de direitos, liberdades e garantias, os posicionamentos autoritários, populistas. Esta pandemia tornou-se terreno de combate ideológico, onde se tem jogado a gestão e tomada do poder.

O “acontecimento Covid-19” provocou uma crise planetária ou uma cadeia de crises que questionam profundamente o que poderá ser o nosso futuro comum. A grande questão que importa considerar é, no essencial, a seguinte: como será a nossa vida depois do “acontecimento Covid-19”? O que será aquilo a que estamos chamando de "mundo de depois"? O que manteremos, enquanto cidadãos, o que manterão as autoridades públicas da experiência de confinamento? Apenas uma parte? Tudo será esquecido, anestesiado ou transformado em folclore? Que sociedades teremos no meio de tudo isto e depois disto tudo?


Como afirma Edgar Morin, na referida entrevista, «a pós-epidemia será uma aventura incerta, onde as forças do pior e as do melhor se desenvolverão, sendo estas ainda fracas e dispersas. Saibamos enfim que o pior não é certo, que o improvável pode acontecer e que, no combate titânico e inextinguível entre os inimigos inseparáveis que são Eros e Thanatos, é saudável e enérgico ficar do lado de Eros.»
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