Variações



A recente publicação do Despacho n.º 7247/2019 que regulamenta para o sector da Educação e Ensino o já reconhecido “direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa” (Lei nº38/2018) inflamou discussões e preconceitos, inspirou oportunismos políticos e outras desonestidades, mas acima de tudo expôs muita ignorância sobre o assunto, que importa clarificar. Na esperança de que faça alguma diferença.
E porque para poder opinar é necessário saber do que se fala, há quatro conceitos que são fundamentais e que usamos tantas vezes pensando que sabemos o que significam. Mas saberemos?  São eles identidade de género, expressão de género, sexo biológico e orientação sexual. 
Dado que o despacho que deu origem a todo este desfilar de imprecisões se aplica às escolas, apresento-vos o boneco abaixo, um dos tantos que estão disponíveis online e que se podem usar nas escolas para ilustrar estes conceitos. Façamos o mesmo. 
Identidade de género
A maneira como definimos internamente o nosso próprio género e como nos sentimos e posicionamos em relação às opções de género que sabemos existirem.  E podemos nos definir como homens, mulheres, nenhum ou uma combinação dos dois, dependendo dum processo influenciado pelo nosso meio e pela nossa biologia. A maioria das crianças tem aos 4 anos uma noção da sua identidade de género, sendo o mais comum a coincidência com o sexo biológico - e falamos aqui de pessoas cisgénero. Mas porque a natureza nos ensina que a diversidade é a lei,  noutras a identificação acontece com o sexo biológico oposto, e falamos aqui de pessoas transgénero, que se enveredarem pela cirurgia de mudança de sexo se passam a chamar transsexuais. Mas não devemos pensar que a identidade de género se esgota nestas classificações, já que o mais certo é existir em cada um de nós uma combinação única de elementos ditos masculinos e elementos ditos femininos.
Expressão de género
Designa uma dimensão mais social, já que se refere à forma como expressamos, intencional ou inconscientemente, um determinado género em termos de aparência e comportamento e à forma como isso é interpretado pelos outros de acordo com as normas sociais vigentes. Uma vez mais, não devemos pensar em extremos de feminilidade e masculinidade, mas em gradações e combinações destes elementos presentes em todos nós, em diferentes situações e contextos.
Sexo biológico
Designa as características físicas – orgãos genitais e reprodutores, hormonas e cromossomas - com que vimos equipados à nascença. Biologicamente, e na esmagadora maioria dos casos, nascemos do sexo feminino ou do sexo masculino, mas noutros, em número muito menor (0,1 a 1,7% da população mundial) nascemos com características biológicas ambíguas que não permitem a identificação clara como macho ou fêmea e a que se convencionou chamar intersexo.
A intersexualidade abriga muitas variações (cerca de 140, segundo este documentário https://telepacifico.com/etiquetas7/ que vale a pena ver) e não é necessariamente evidente à nascença, como no caso dos hermafroditas, a variação mais conhecida. Antes do reconhecimento desta realidade, procedia-se muitas vezes a cirurgias entendidas como “corretivas” e que tentavam aproximar a criança do sexo considerado mais viável dum ponto de vista médico, mas que tantas vezes não correspondia à forma como a pessoa se sentiria, com as consequências que se podem imaginar.
Orientação sexual
A considerar há ainda este conceito que se relaciona com aqueles por quem sentimos atração sexual ou romântica. Podemos ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais ou até assexuais, não estando a nossa orientação dependente nem do nosso sexo biológico nem da nossa identidade de género. Ou seja, uma pessoa do sexo feminino pode ser transgénero e, assim sendo, ver-se como homem e sentir-se atraído por mulheres, ou homens, ou ambos ou nenhum.
É importante reter que todos estes conceitos são independentes uns dos outros, apesar de relacionados. Ou seja, a orientação sexual não determina a expressão de género, que não é determinada pela identidade de género, que não é determinada pelo sexo biológico, e assim sucessivamente, deixando antever uma extensa possibilidade de combinações diferentes, alicerçadas em fatores biológicos, sociais e psicológicos reais e reconhecidos, que poderão lançar outra luz sobre comportamentos que ainda causam estranheza e desconforto aos mais dados a intolerâncias e preconceitos.
Ao contrário do que algumas opiniões parecem pressupor, a sexualidade e as questões de género não são dependentes da nossa concordância. A nossa natureza não pede licença para existir. Ninguém se lembraria de ser contra ou a favor da existência de pessoas ruivas, pois não? Pois têm a mesma “culpa” de ter nascido com uma variação de pigmento quanto alguém que se insira numa destas categorias tem de ter nascido diferente. Tão simples quanto isto … no mundo perfeito que temos o dever de ir construindo. Neste, no mundo em que vivemos, o que o decreto faz é preciso fazer. A formação, a informação, o acompanhamento e a vigilância podem mudar realidades. Não só dos alunos diferentes, mas também dos outros, da maioria, para que se desenvolva neles a compreensão e a empatia e não o preconceito ignorante.
No âmbito da minha atividade profissional sei que existem crianças e adolescentes com sexualidades e identidades de género diferentes da maioria que têm medo de ir à casa de banho, de circular nos corredores da escola, de usar o transporte escolar porque vão ser insultados, cuspidos, empurrados e humilhados. Reconhecer estas realidades e legislar para tentar evitá-las parece-me um comportamento meritório. O ideal seria que não fosse preciso regulamentar a tolerância e o direito à diferença, assim como o civismo e a solidariedade. Um dia talvez, no tal mundo perfeito que temos o dever de ir construindo. 

Nota final e incontornável: aliada a toda esta polémica esteve a lamentavelmente anacrónica e populista intervenção da Juventude Popular, que numa bravata de triste estratégia eleitoralista e desonestidade intelectual alimentou os monstros ao invés de os combater. Fica a nota para a qualidade das lideranças que assim se anunciam.

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