"O Homem não é completo senão quando joga" - Schiller


Há dias o Dnotícias publicou, sem qualquer comentário (nem era preciso), uma lista de material solicitado por um estabelecimento de aprendizagem da Região. Não me interessa saber se é público ou privado. Até porque, com maior ou menor exigência, o problema é o mesmo. Já vi uma lista de uma escola pública onde era pedido material "Caran d'Ache" que, segundo creio, não é nada barato! A questão é outra. Aos quatro anos de idade as preocupações de aprendizagem terão de ser outras, mais enriquecedoras e de menores encargos.





Guardo do saudoso Professor Rubem Alves (1933/2014) aquela ideia do "professor de espantos". A profundidade desta designação está muito para além do significado das palavras que a compõem. O "professor de espantos" ensina a pensar, cria na criança a curiosidade e, portanto, esse deve ser o objectivo da educação... criar a alegria de pensar, salientou Rubem Alves. "Quando o professor provoca a curiosidade da criança, ela pergunta, quando o professor manda, já estragou (...) a missão do professor não é dar respostas prontas, a sua missão é a de provocar a inteligência, o espanto, provocar a curiosidade (...)". Infelizmente, não é assim. Logo nas primeiras idades, a lista de material, a mochila ou o trolley pesam... pesam ainda mais, nas carteiras dos pais.

Pois, é o maldito programa, definido por alguns  adultos de conhecimento débil, de adultos que não escutam a voz dos investigadores, de adultos que têm a desfaçatez de complementar as suas políticas, afirmando que tudo é feito colocando a criança no "centro das políticas educativas". Que grosseira mentira! 

Ora, aquela lista apresentada por essa escola, semelhante a tantas outras listas de material, constitui a prova da falência de um pensamento adequado às verdadeiras necessidades do desenvolvimento das crianças.

Desde logo esquecem-se, intencionalmente, do importantíssimo acto de brincar e da descoberta, porque brincar é estruturante a todos os níveis. Tenho presente Luciana Leiderfarb em um artigo publicado no Expresso: 

"Bem-vindos à nova era, a das crianças que não têm tempo para brincar. E a dos adultos obcecados por ocupar-lhes os dias. Que mundo é este onde a brincadeira se tornou indesejável?". 

Nem mais, logo aos 3/4/5 anos matam a vivência de uma infância que não volta mais. Tudo porque existe uma absurda pressa em "ensinar", não sei bem o quê, quando no jogo infantil está lá tudo o que é fundamental. Como Gross (Les jeux des animaux - 1902) mostrou, "o jogo prepara a vida séria, como um projecto de vida séria que esboça, com antecedência, essa vida. Pelo jogo a criança conquista, pela primeira vez, a autonomia, a personalidade e até os esquemas práticos de que a actividade adulta terá necessidade".

De facto, vivemos um tempo de iliteracia motora de péssimas consequências. Em 2016 escrevi um texto subordinado ao título: "Andam a matar a importância de ser criança e de brincar". Transcrevo uma parte: 

“(...) As crianças são dotadas para brincar, é o seu estado natural. Precisam de ser perseguidas, de perseguir, lutar, correr, esconder-se, inventar. E a sociedade faz um esforço para as ter quietas e em silêncio”, comenta o especialista Doutor Carlos Neto. Num quadro de quase permanente institucionalização, em que os mais novos passam na escola quase tantas horas diárias quanto um adulto no trabalho, a configuração do seu tempo livre nesse espaço revela-se determinante. E a escola “ainda trata o recreio como algo avulso ao processo de ensino”, sem perceber que “o tempo para brincar deve ser bem estruturado e encarado como um contributo para aprender (...) No jardim de infância a situação é semelhante. Em Portugal, de Fevereiro a Maio — a estação invernal — as crianças passam apenas uma média de 10,8% do seu tempo em espaços exteriores, mais apetecíveis para a brincadeira livre. Este é um dos dados que constam do estudo “Interação Criança-Espaço Exterior em Jardim de Infância”, da autoria de Aida Figueiredo. A professora da Universidade de Aveiro concluiu ainda que, nas creches observadas, os bebés com menos de um ano só saíram ao exterior duas vezes em quatro meses. O estudo serve também para comparar realidades educativas opostas: se na Noruega, por exemplo, são exigidos entre 24,2 e 33 m2 por criança, em Portugal apenas são previstos 4 m2 por criança.

Quando é que o brincar livremente se tornou a actividade mais rara, menos praticada, na vida das crianças? E quando é que este quadro negro passou a ser encarado como normal? “O que não é normal é não se olhar para as crianças como cidadãos com direitos, isto é, com direito ao tempo livre e a fazer o que é próprio na infância: brincar, correr e dialogar com outros”, frisa Maria José Araújo. Para esta especialista em educação e professora no Instituto Politécnico do Porto, chegámos a um ponto em que o acto de brincar é excedentário e conotado como “fútil” pelos adultos, cuja ideia de competência “passa por estruturar a vida das crianças, não respeitando as suas necessidades nem proporcionando as condições para elas poderem brincar”.

E brincar está longe de ser fútil. “É uma actividade completa, em que as crianças aprendem a decidir, a negociar, a colaborar, a pensar e a criar; descobrem o que querem e como querem fazer; elaboram e exprimem as suas fragilidades e traumas; e começam a ler a realidade social, a interpretá-la e a agir sobre ela”, diz a investigadora. Pelo contrário, o não brincar ocasiona danos profundos no ser humano: “Gera crianças mais obesas, mais sentadas, com menos competências sociais e relacionais, mais isoladas e individualistas, e que em adultos estabelecem relações mais difíceis. (...) Promove, igualmente, uma pandemia de crianças cansadas e stressadas que acabam sendo alvo de medicação". (...) “Estes miúdos vão para a sala de aula brincar, extravasar, porque não lhes foi dada outra hipótese. Ora, uma criança que não brinca não aprende a concentrar-se”

Em um outro texto, de 2018, publiquei a síntese de outros autores que tive o ensejo de os ler e estudar:  

Sublinhou Jean Chateau (1961), "se o jogo desenvolve as funções latentes, compreende-se que o ser mais bem dotado é aquele que mais joga" (...) "para ela quase toda a actividade é jogo, e é pelo jogo que ela descobre e antecipa as condutas superiores" (...) "a fuga leva a criança para um mundo onde ela é toda poderosa, onde pode criar". Para Claparède, in Psychologie de l'enfant e pédagogie expérimentale, "o jogo é o trabalho, o bem, o dever, o ideal de vida. É a única atmosfera em que o seu ser psicológico pode respirar, e, consequentemente, pode agir" (...) Perguntar por que joga a criança, é perguntar por que é criança". Ou então, na palavra de Schiller "o Homem não é completo senão quando joga".

É óbvio que não estamos no tempo da "pedra - ardósia", do "lápis de pedra" e da esponja ou paninho! Os tempos são outros e os materiais também. Claro que isso é entusiasmante. Mas, atenção, nada de subjugar as crianças aos interesses das editoras e das empresas que colocam "coisas" no mercado que, no fundo, pouco ou nada adiantam. É isso que está a acontecer desde há muito! Apenas um exemplo: escrever, todos os educadores sabem, constitui um acto de coordenação óculo-manual. Certo? Pois no jogo infantil são inúmeras as situações que podem ser vividas para desenvolver essa habilidade que depende, em muito, da melhoria da motricidade fina. Tenho um neto que, um dia, tinha ele três anos, regressado da escola, disse-me: "avô, tenho de fazer os TPC". E o que eram? Muitos riscos, ora para a direita, ora para a esquerda, ora na vertical. Questionei-me, para quê, quando são inúmeras as situações, onde, através do jogo, na escola e em casa, é possível desenvolver essa plasticidade motora. O "caderninho de riscos" mecaniza (não torna o gesto doce e adaptado) aquilo que deveria ser uma capacidade adquirida através do jogo. 

Conclusão: aos 4 anos, não tenham pressa. Esqueçam esse condicionador programa e essa avidez de adulto em "produzir" à custa da criança. Tenham presente o texto do Psicólogo Eduardo Sá: "(...) aquilo que me preocupa é que mais escola, sobretudo como ela está a ser vivida, signifique menos infância e quanto menos infância, mais nos arriscamos a construir pessoas magoadas com a vida. Quanto mais longa e mais rica for a infância mais saudável será a adultez (...) os pais estão muito enganados ao pensarem que mais escola significa mais educação (...) neste momento a infância começa a ser perigosamente a escola e, de repente, há toda uma vertente tecnocrática como se o que estivesse em primeiro lugar fosse toda a formação e depois viver a vida. Isto é um absurdo". 

Um lamentável absurdo. Libertem, pois, as crianças, não lhes roubem o tempo de infância. 

Ilustração: Dnotícias - Google Imagens.
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