«A pandemia
não é a mesma para todos os países, nem a mesma para todos dentro de um mesmo
país ou da mesma cidade. Muitos dizem que estamos todos no mesmo barco, mas não
é bem assim. Estamos todos passando pela mesma tempestade no mesmo mar. Mas é
como se alguns estivessem em transatlânticos, outros em iates, outros em barcos
à vela ou mesmo canoas». A afirmação é da Presidente da Fundação Oswaldo Cruz,
Nísia Trindade Lima.
Para aquela
socióloga, o Covid19, no plano sanitário, nas suas incidências concretas, é
condicionado pelas desigualdades sociais, assim como também se poderá dizer que
nos seus impactos económicos, sociais e políticos, a pandemia tem réplicas
muito assimétricas.
Se para os
responsáveis pela política de direita o Covid19 tem constituído um pretexto
para ir o mais longe possível no assalto aos direitos, embora existam fortes
contradições no interior do sistema capitalista, são os trabalhadores por conta
de outrem quem mais fragilidades experimenta.
Nos abalos
sísmicos que o Covid19 tem provocado, se é um dado objetivo que se acentuaram
problemas sociais, evidentemente que aqueles que de forma fulminante tudo
perderam, porque tinham um contrato de trabalho precário, porque eram
contratados à hora, chamados por sms ou via “WhatsApp”, para esses milhares de
trabalhadores tudo, de repente acabou. Ou seja, no meio da exploração e da
precariedade dos vínculos laborais, estes, muito mais do que outros, foram
brutalmente afetados, ficaram completamente desprotegidos.
Existem também
milhares de trabalhadores atingidos pela generalização do regime de lay off e
que terão cortes significativos nos seus rendimentos. Mas, estão a sentir ainda
maior penalização aqueles milhares de trabalhadores que auferem os mais baixos
salários, todos aqueles cujo salário corresponde ao Salário Mínimo ou é
ligeiramente superior ao valor do Salário Mínimo.
As
consequências do Covid19 não são semelhantes dentro de um país, numa região ou
dentro de uma cidade. Então quando acontece haver uma “cerca sanitária”, a
estigmatização de lugares e gentes das ultraperiferias sociais, em tantas das
vezes, só confirma e agrava formas de segregação social e os mais profundos
preconceitos sociais. Aliás, não por acaso, se tem tanto utilizado a expressão
«mantenha a distância social» ou «garanta o afastamento social», quando o que
se deveria dizer , quando muito, era «mantenha afastamento físico» ou «mantenha
a distância física». Tudo isto não se desliga de uma enorme intencionalidade
ideológica.
Com os dias do
Covid19 muitos passaram a ser estranhos no próprio País, na sua Cidade. Somaram-se,
para além das desigualdades sociais, estatutos de dessemelhança. À estigmatização
e aos lugares da exclusão social adicionou-se um tratamento assente na
diferença do ser, no ser. Mais ainda do que “desiguais”, como sublinhou Cristovan
Buarque, alguns passaram a ser considerados como dessemelhantes. E sempre que
alguém ou nalgum lugar surgiram rumores de infeção ou indicações sobre
eventuais possibilidades, mesmo que remotas, de algum hipotético processo de
contacto com alguém do “universo Covid19”, aí desencadeiam-se mecanismos de
completa irracionalidade nas formas de repulsa de quem passou a «não poder ser
considerado humano “como nós”», os “não contaminados”…
Quase que de
forma paradoxal emergem das mais surpreendentes e genuínas expressões da
solidariedade. Descrevem-se histórias de enormes iniciativas de ajuda a
desvalidos, formas de entreajuda desmedida, práticas de imensa criatividade na
arte da procura do outro que mais precisa de meios, de reconhecimento, de
gestos de gratidão, de pão. E manifesta-se nestes dias Covid19 uma nova linguagem
do cuidado do outro, do respeito, do resguardo, do sentido do tratamento cuidadoso
que a alteridade me incumbe.
Mais ainda, estes
dias Covid19, no seu reverso, exemplificam também uma invulgar ética da coragem.
Mais do que por heroicidade, por sentido do dever, quando quase toda a gente
tedia a “se esconder em casa”, confirmou-se da parte de tanta gente uma práxis
de despojamento para atender o outro/outros em serviços essenciais para que a
vida coletiva não fosse travada. Com a plena consciência dos riscos, muitas
pessoas exercitaram, e continuam a exercitar, formas de serviço à comunidade
para garantir o socorro a quem esteve em estado crítico, para prestar cuidados
a quem esteve ou está infetado, dando da sua vida em tudo quanto seja
necessário para proteger quem é visto pela sociedade como indesejável,
dessemelhante. Esta ética da coragem ganhou novos contornos nestes dias Covid19.
Estes dias
Covid19 são marcados por sinais muito contraditórios, por indicadores de
intolerância e irracionalidade, por gestos de acolhimento e de inovação, de invenção.
No final destes dias duma cadeia de crises, de megacrise ou de policrise, como
tem classificado Edgar Morin, ninguém em bom rigor consegue antever como
estaremos ou como seremos. Seguramente, estaremos e seremos outros.
0 comentários:
Enviar um comentário
Pedimos que seja educado e responsável no seu comentário. Está sujeito a moderação.