De que estávamos à espera? De um futebol vivido com paixão, com enorme entusiasmo, mas com moderação e respeito? De um espectáculo vivido pela beleza do movimento, pela emoção, pela técnica e táctica? De uma competição séria, dirimida com audácia, ousadia, justiça, honra e absoluta lealdade? Dificilmente podíamos esperar um quadro destes…
Raramente escrevo sobre assuntos relacionados com o futebol profissional. E quando resolvo juntar umas palavras, mor das vezes, é no quadro de uma política educativa através do desporto. O resto, desde há muito, passa-me ao lado. Apenas observo. Pelo menos há 30 anos que não assisto, ao vivo, a uma partida de futebol. Refastelo-me no sofá, de quando em vez, para seguir um jogo de altíssimo rendimento, pela qualidade a todos os níveis. Desinteressei-me, talvez, depois de ler um extraordinário artigo no Le Monde Diplomatique, assinado por Eduardo Galeano (1940/2015), a que deu o título: “Football, une industrie cannibale”. Desde esse tempo, premonitoriamente, o autor, antecipou aquilo que hoje corre debaixo dos nossos olhos de actores/espectadores: salários absolutamente pornográficos, corrupção de arrepiar os mais insensíveis, tráfico de influências, violência e até morte. Aprendi com o grande Mestre, o filósofo do desporto, Manuel Sérgio, um dos maiores pensadores mundiais, que o desporto deveria ser “jogo, humor e festa”. Ora, essa pureza parece estar irremediavelmente perdida.
Desporto vs indústria. O futebol profissional não é desporto. Existe, sim, uma modalidade desportiva (existem outras) que é utilizada com fins empresariais. As Sociedades Anónimas Desportivas pertencem ao domínio empresarial. Não confundamos, portanto, com os princípios que enformam a “Ode ao Desporto” de Pierre de Coubertin: "Ó Desporto, prazer dos Deuses! Essência da vida (...) Ó Desporto, tu és a beleza! És o arquitecto deste edifício que é o corpo, que pode tornar-se abjecto ou sublime, se degrada na vileza das paixões, ou saudavelmente se cultiva no esforço. (...) Ó Desporto, tu és a Justiça! A equidade perfeita, em vão perseguida pelos Homens nas insuições sociais (...) Ó Desporto, tu és a audácia! Todo o sentido do esforço muscular se resume numa única palavra: ousar. (...) Ó Desporto, tu és a Honra! Os títulos que tu conferes não têm qualquer valor se adquiridos por meios diferentes da lealdade absoluta. (...)."
Portanto, não confundamos estes princípios com outras finalidades que consubstanciam a sua prática profissional. Tratando-se de uma indústria que fabrica exacerbadas paixões, ódios, fúria e espaços de comportamento irracional, aliás, basta ter presente, sobretudo nos encontros de risco elevado, as massas adeptas serem conduzidas pelas forças de segurança para dentro dos estádios, para concluir desse “canibalismo” que, grosso modo, tal indústria configura e potencia.
Ora, o que aconteceu na Academia de Alcochete, que não é situação única no futebol por esse mundo fora, não é mais do que o corolário de uma construção, eu diria, com boa vontade, inconsciente, de múltiplos factores, desde a escola à comunicação social. De facto, entre nós, a Escola, genericamente, não tem despertado e não tem incutido o desporto para a vida, segundo valores humanistas, fundamentalmente pela sua organização, porque está presa ao nível curricular a uma Educação Física que, ao querer ser tudo no plano pedagógico, acaba por deixar um rasto de desilusão.
Educar para os valores. Associado a isto, a comunicação social e o dirigismo. Todos os dias, são intermináveis horas, em quase todos os canais, de forma repetitiva, agressiva, doentia e muito pouco normal, painéis de comentadores, com dirigentes desportivos, ex-árbitros, jornalistas, empresários e até políticos que de tudo sabem, com intervenções que formatam frágeis consciências geradoras dos pressupostos da violência. Em alguns casos chega a ser degradante, tal a fúria demonstrada entre uns e outros. Até vejo gente com excesso de peso (!) que muito dificilmente são capazes de correr para uma paragem de autocarro, falando de “desporto” como se fossem exemplo de uma prática entendida, no mínimo, como bem cultural. Um paradoxo, que só ajuda a compreender o tal “canibalismo”.
De que estávamos à espera? De um futebol vivido com paixão, com enorme entusiasmo, mas com moderação e respeito? De um espectáculo vivido pela beleza do movimento, pela emoção, pela técnica e táctica? De uma competição séria, dirimida com audácia, ousadia, justiça, honra e absoluta lealdade? Dificilmente podíamos esperar um quadro destes. Pelo contrário. E quando ouço o primeiro-ministro falar da necessidade de uma nova “autoridade contra a violência” questiono-me, para quê? Já existe lei que chegue e são vários os organismos com essa missão e vocação. Daí que, o que falta é educar para os valores, o que falta é bom senso na generalidade dos órgãos de comunicação social. O que falta, mesmo no inalienável direito constitucional ao associativismo, é a existência de rastreio nos candidatos a dirigentes. Isto não significa que, por esta via, se eliminem todos os casos. A marginalidade andará sempre à espreita, mas estou certo que jamais atingirá a vergonha que está instalada.
Regresso ao meu Amigo Doutor Manuel Sérgio: "(…) O interesse do capitalismo vigente é querer democratizar na medida em que quer vender. O desporto como mercadoria, a cultura como produto vendável, segundo as leis do mercado, é tudo quanto o capitalismo sabe de cultura e desporto (…)". Pensemos nisto em conjugação com a vergonha de Alcochete.
NOTA
Texto publicado na revista A Página da Educação, edição de Verão de 2018.
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