Portugal foi durante a longa noite de Salazar e Caetano uma sociedade em
que o medo era um fardo pesado. O medo estava presente na vida dos indivÃduos,
entrava no corpo e subia pelas veias.
Aquela não foi uma noite qualquer. Foi a noite presa num cÃrculo de
ameaças. Foi a noite colada ao corpo de tanta gente. Foi a noite, uma atmosfera
do medo, o silêncio vazio, gelado e imenso para tanta gente. Foi a noite dos
dias preenchidos por receios diários e pavores noturnos.
O medo vagueava.
“Perfilhados de medo” é um poema
de Alexandre O’Neill que descreve a opressão fascista que quase durou meio século
em Portugal. Publicado no livro “Abandono Vigiado” (em 1960), o soneto foi
musicado e interpretado por José Mário Branco no álbum “Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades”, lançado em 1971.
O poema dá-nos conta de como em Portugal havia a intrusão do medo. O medo
pairava nas conversas; instalara-se nas escolas, nas igrejas, no
associativismo, nos locais de trabalho; alastrara-se pelas ruas, pelos cafés. O
terror e o medo, eram sentimentos que se insinuavam nas meias palavras, mas
também nas pausas entre as palavras.
Em Portugal falava-se em surdina. Sussurrava-se.
Em Portugal vigorou um sistema de poder baseado numa teia de cidadãos
vigiados e punidos por um sistema de controle (o estado policial), através da
ameaça e da imposição da violência enquanto instrumentos de controlo social,
através da força da institucionalização do medo como fonte da manutenção da
ordem.
O medo assumia a função de princÃpio estruturante da sociedade,
impregnado no imaginário coletivo e nos valores sociais. E o imaginário do medo
cresceu na relação direta com o alargamento do poder simbólico do regime.
Os agentes da PIDE não tinham de estar fisicamente presentes para
ameaçarem, eram vultos no coração dos portugueses.
O medo infiltrava-se.
Afinal, do que tinham medo?
Como escreveu Jean Delumeau: «O distante, a novidade e a alteridade
provocavam medo. Mas temia-se do mesmo modo o próximo, isto é, o vizinho»[1].
O medo estava ao lado ou estava à frente, estava no vizinho, no forasteiro, no
medo de si mesmo. O medo de não resistir à tortura. O medo de não estar Ã
altura e denunciar. Falar.
Como se processou a disseminação das ideias do medo?
O que contribuiu para a inculcação do universo aterrador nas
mentalidades?
Todos tinham já ouvido falar de alguém que fora ou era vigiado e interrogado,
ou de alguém que fora preso ou torturado. Foi urdida uma teia de espÃrito
permeável ao terror.
Formou-se uma cultura trágica, impulsionada pelas histórias trágicas, que
mostravam a constante vigilância da polÃcia polÃtica e dos seus colaboradores.
Havia o medo fÃsico, claro, capaz de causar receio, com todas as
consequências psicológicas que o terror exercia na memória individual e
coletiva. Pressentia-se o odor do medo. InvisÃvel, o medo continuava a respirar
dentro do nosso paÃs.
Quando cresce o fenómeno populista na Europa e pelo resto do mundo,
quando alastra a extrema direita e emergem, de novo, os projetos do fascismo,
em abril, mais ainda se coloca a tarefa de comemorar o 45º aniversário da
revolução de abril.
Quando tantos são os esforços para promover valores de extrema-direita e
tão poderosas são as operações de branqueamento do fascismo importa avivar a
memória sobre a pesada noite do fascismo em Portugal.
[1]
DELUMEAU, Jean – História do medo no
Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras,
2009, p. 82.
Qual a diferença para a Madeira em que existem desconfianças públicas que o GR vigia os computadores de seus funcionários, e que comentadores anónimos são nomeados pelo nome publicamente pelos seus detractores?
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